Um estudo espacial inédito focado nos solos de Marte e da Lua, recentemente lançado, indica que há semelhanças entre as características desses ‘terrenos’ com pastagens degradadas do Brasil e, por meio de experimentos que ‘imitam’ os solos especiais (regolitos), uma pesquisadora brasileira e mais quatro holandeses identificaram potencial de replicar manejos agrícolas e produzir alimentos frescos fora da Terra.
Embora pareça uma realidade distante e nada factível, Rebeca Gonçalves, astrobióloga brasileira e pesquisadora na Agência Espacial Brasileira (AEB) com participação no Programa Artemis, da Nasa, diz que esse tipo de análise está na vanguarda de uma revolução que promete transformar a agricultura global por meio de descobertas espaciais, tornando o campo agronômico ainda mais multidisciplinar.
Marte teria, então, “um sistema alimentar bioregenerativo”, enfatiza ela, “onde todos os recursos são fornecidos e produzidos com mínimo ou nenhum reabastecimento da Terra”, forma mais vantajosa de promover saúde humana se comparada com alimentos desidratados pré-embalados que os astronautas costumam consumir. Além disso, com alimento fresco, se reduz a comida a bordo da espaçonave (um fator que também diminui significativamente o custo financeiro da missão).
A conexão com a agropecuária brasileira está presente no método de desenvolvimento da pesquisa, que testa sistemas de consórcio e monocultura com leguminosas. No artigo, a autora descreve que a jardinagem em Marte é viável.
“Embora Marte tenha uma atmosfera muito fina (1% da Terra), contém os elementos necessários para o crescimento das plantas, como dióxido de carbono (CO2) e nitrogênio (N2), além de ser abundante em água (congelada) presente tanto nas calotas polares quanto em vários locais sob a superfície marciana”, escreve.
Os primeiros resultados foram publicados em maio deste ano em uma revista internacional de prestígio científico, a Plos One, mas liberados para divulgação só agora. “Neste estudo, nosso objetivo foi testar a viabilidade e a perspectiva de aplicar um sistema de consorciação como método de produção de alimentos em solo nas colônias marcianas. Essa abordagem inovadora para a agricultura em Marte oferece uma visão de como podemos otimizar o uso de recursos”, explica a pesquisadora.
Ervilha, cenoura e tomate foram as plantas selecionadas para testar em três tipos de solo já identificados em Marte.
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A ideia surge de um debate da agência espacial de como enviar comida fresca ao espaço, que será usufruída por operações de profissionais da Nasa, por exemplo. Foi assim que a brasileira, então, simulou um cenário agrícola do planeta Marte, o quarto do Sistema Solar, localizado entre a Terra e Júpiter.
“A próxima etapa de pesquisa envolveria enviar humanos para realizar o trabalho, já que os humanos são muito mais autônomos e eficientes na realização de tarefas de campo. No entanto, ter humanos em Marte significa que suas necessidades básicas devem ser atendidas, e isso inclui alimentação”, ressalta o estudo.
Abastecer e reabastecer todas as necessidades alimentares de um assentamento de longo prazo a partir da Terra é impraticável e economicamente inviável, o que significa que a tripulação terá que utilizar os recursos locais de Marte para produzir pelo menos parte de suas necessidades alimentares localmente, assim como em outras missões de pesquisa em geleiras, por exemplo, que fazem esse tipo de teste de alimentação fresca e não enlatada.
Os cálculos apresentados na pesquisa indicam um método para otimizar a produção de alimentos em colônias marcianas e a proposta para novos estudos, já que a Agência prevê no futuro o desenvolvimento de colônias de alimentos marcianas em grandes estufas, seja na superfície, seja debaixo da terra, aproveitando os gigantescos tubos de lava criados por vulcões que já foram ativos.
Simulação
Para isso, os pesquisadores usaram pequenos vasos em um ambiente controlado de estufa e espécies compatíveis com os requisitos das missões espaciais.
Os nomes dos vasos estão em códigos. O “MMS-1” é o simulador de regolito marciano, que foi imitado com solo de envasamento e areia. Nele, a pesquisadora fez um plantio consorciado entre as três culturas e plantio separado para projetar o sistema de monocultura.
O chamado regolito é uma camada de material solto e heterogêneo que cobre rochas sólidas, sendo formado por fragmentos de rocha e solo, que é ilustrado nas imagens milimétricas da lua, por exemplo.
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Parâmetros de comparação acadêmica com o cultivo em laboratório para desenvolver resultados para alimentos em Marte — Foto: Divulgação/Pesquisa
Bactérias rizóbias, fonte de bioinsumos no Brasil, foram adicionadas para ajudar na fixação de nitrogênio da ervilha. Em seguida, a meta era calcular o desempenho das plantas.
Foi então que os pesquisadores chegaram a uma equação que junta medidas da biomassa acima do solo (que se considera caule, folhas e ramos), rendimento, percentual do índice de colheita e a quantidade de NPK (nitrogênio, fósforo e potássio).
Todas as amostras pesadas frescas foram colocadas em fornos para secar a 70°C por 48 horas.
Resultados
Entre os principais resultados apresentados estão que a consorciação teve efeitos claros no desempenho das plantas no regolito marciano, sendo benéfica para o tomate, mas prejudicial para a ervilha e a cenoura, resultando em uma desvantagem geral de rendimento em comparação à monocultura.
“Este efeito provavelmente resultou da ausência observada de nodulação de rizóbios no regolito marciano, negando a fixação de nitrogênio e impedindo que as plantas consorciadas aproveitassem sua complementaridade”, explica.
O estudo notou que as condições adversas do solo marciano e lunar, como pH alto, compactação elevada e deficiências nutricionais, restringiram a sobrevivência das bactérias. Na areia, onde condições mais favoráveis do solo promoveram nodulação e fixação do nitrogênio de forma eficaz, a consorciação superou significativamente a monocultura.
“À medida que entramos em uma nova era de exploração espacial, ter um assentamento permanente em Marte é uma realidade num futuro não tão distante”, descreve a autora da pesquisa.